sábado, 15 de janeiro de 2011
A difícil tarefa de Demétrios na última noite de Natal
A difícil tarefa de Demétrios na última noite de Natal
Afonso Luiz Pereira
Meu pai sempre me dizia que, em tempos de tribulação ou de guerra, a tarefa mais difícil de realizar era destinada apenas àquele que tinha a capacidade de suportá-la.
Dia 18 de dezembro de 2031.
Depois de dois dias de caminhada, faltando sete para o Natal, milagrosamente encontramos uma árvore saudável, em meio à vegetação rarefeita e depauperada, nascida do solo comprometido da radiação nuclear. Era um pinheiro ainda pequeno, bonito, viçoso e, apesar do tamanho, tínhamos certeza de ser suficientemente adequado para o cobrirmos de penduricalhos natalinos. Oh, sim, Senhor, por certo que poderíamos fazer dele uma verdadeira obra aos olhos das crianças. Elas finalmente teriam a oportunidade de experimentar uma festa natalina completa, como as que se faziam antigamente, e das quais não cansávamos de atiçar-lhes a imaginação. Lembrei-me do brilho dos olhos de Mateus e Alice, meus filhos, quando ouviram falar pela primeira vez das antigas festividades natalinas em nossa época de criança. Imaginem só quão reluzentes não haveriam de ficar, ainda mais, aqueles olhinhos tristes, quando estivessem na presença de um sonho que só vínhamos alimentando através de palavras?
Ontem mesmo, ao entrarmos discretamente
na velha e decrépita vila de Borborema, tivemos os primeiros
indícios concretos de que era possível, sim, conseguirmos a
façanha de realizar uma noite de natal completa. Abílio achou
uma roupa de Papai Noel e acessórios, incluindo barba e barriga
postiças, gorro, cinto, enfim, tudo bem conservado dentro de
uma caixa de papelão. E se não fosse o fato de atrair as dezenas
de mortos-vivos que circulavam em frente aos escombros da
loja de conveniências, gritaríamos “hurras”, bateríamos palmas
e riríamos alto para extravasar tamanho contentamento.
A ideia da Noite de Natal só tomou corpo, de
verdade, quando o negro Ateneu, teimoso como uma mula,
decidiu se embrenhar na capital infestada de mortos-vivos
no intuito de demonstrar a sua valentia irresponsável, atitude
típica de jovem mal saído da adolescência, e, não sabendo como,
fez promessa de trazer das ruínas da cidade algum souvenir que
ainda não tivéssemos no forte. Pois não é que ele trouxe, entre
algumas quinquilharias sem valor, um pisca-pisca natalino e
uma bateria para fazê-lo funcionar. Por isso, naquele momento,
ao encontrarmos a roupa de Papai Noel, não cabíamos em nós
de tanta felicidade. Possuíamos quase tudo para materializar o
sonho de nossos filhos. Sim, quase tudo. Faltava a árvore.
Dia 19 de Dezembro de 2031.
Hoje à tarde ocorreu algo extremamente
incomum. Quando caminhávamos pelo descampado cinza, de
vegetação rasteira, pontuado por umas poucas árvores mirradas
e quebradiças, do que outrora fora a zona rural circunvizinha
à cidade de Borborema, avistamos num aclive pedregoso,
ao longe, cincos mortos-vivos postados em atitude rara de
observação. Muitíssimo estranho, aquilo! Eles não eram dados
a observar, muito pelo contrário, eles atacavam sem pensar em
sua própria segurança. Parei abruptamente para apontá-los
ao grupo. Não nos intimidamos com aquelas criaturas porque
estávamos em mesmo número, e fortemente armados.
A escolha de se fazer o caminho por áreas mais
afastadas dos centros urbanos destruídos era justamente no
sentido de evitar as concentrações de zumbis, muito mais
comuns nas cidades abandonadas. Levei o binóculo aos olhos, e
o que vi me deixou estarrecido! O morto-vivo mais alto, vestido
com uma camisa amarela da Petrobrás, na verdade um conjunto
de trapos e tiras de pano encardido por sobre o corpo coberto
de enormes feridas, lançava seus olhos esbranquiçados, sem
vida, sobre nós de uma maneira diferente. Ele torcia a cabeça
bruscamente para um lado e para o outro, como se buscasse
entender porque cinco apetitosos humanos se arriscavam a
carregar uma inútil árvore, sem frutos, em campo aberto. “Acho
que o maldito está pensando!”, falei, sem me voltar aos demais.
Não gostei nem um pouco da situação. De repente, ele emitiu
alguns grunhidos e se encaminhou, levando os outros com ele,
para o lado oposto do aclive pedregoso, sumindo de nossas
vistas. Todos nós ficamos pasmos, sem entender, olhando
apatetados uns para os outros como que a dizer: “o que deu
neles?”
Dia 20 de Dezembro de 2031.
O que eu mais temia aconteceu: caímos numa
emboscada. Para chegarmos mais rapidamente ao forte,
decidimos encurtar caminho através da estrada principal da
Vila do Sossego. Depois de avançarmos quase à metade da
rua deserta, coberta de poeira e lixo, fomos surpreendidos! Os
mortos-vivos, bem mais aterradores à noite, inesperadamente,
começaram a surgir das vielas escuras de ambos os lados da
passagem. Nunca, em todos estes anos, havia testemunhado
por parte dos zumbis semelhante planejamento sincronizado
de ataque. E qual não foi a minha surpresa ao perceber, lá
no final da rua, a figura grotesca, mal cheirosa e pútrida do
“Camisa Amarela”, emitindo grunhidos altos e gesticulando os
braços, como se fosse um regente conduzindo a sua orquestra
apocalíptica. Filho da puta, esbravejei com ódio.
“Abílio, você arrasta o pinheiro, enquanto lhe
damos cobertura. Vamos sair deste inferno.” – Disse alto,
tomando a decisão de imediato.
Escolhemos a formação de defesa retangular, em
paralelo com as laterais da rua, formação esta que nos permitiria
abrir fogo para todos os lados, sem descuidar da retaguarda.
Vimos Abílio, o homem fisicamente mais forte do grupo, no
centro do retângulo, sacar a sua metralhadora de pequeno
porte com a mão direita e, com a esquerda, agarrar uma das
grossas hastes da nossa preciosa árvore. “Estou pronto. Vamos
embora”, ele disse, começando a puxá-la de arrasto enquanto já
apontava e estourava, com uma rajada breve e seca, o peitoral
do zumbi incauto mais audacioso. O sangue preto que espirrou
da criatura pareceu instigar a selvageria nos outros.
“Vamos recuar, pessoal” – falei alto, decidido, na
intenção de abrir caminho à força na retaguarda mesmo, por
esta, aparentemente, conter um menor número de mortosvivos.
E olha, não economizamos munição. Atiramos no que
vimos e não vimos, opondo resistência desesperada contra
os monstros que se projetavam mais próximos da formação
retangular. O jovem Trindade, impetuoso, porém inexperiente,
berrava alucinado apontando a metralhadora de um lado para
o outro, tentando varrer a bala as coisas ensanguentadas que
lhe vinham no encalço. “Na cabeça, Trindade. Um por vez, na
cabeça”, eu berrava em meio à confusão. Trindade foi agarrado
pelo antebraço por um deles e puxado para dentro do turbilhão
de criaturas esfomeadas. Recuso-me a descrever a cena grotesca
que se seguiu.
Abílio, Hermes, Juarez e eu, homens experientes
na exploração de campo, talhados para reagir a um ataque como
aquele, tínhamos ciência que em dado momento da peleja não
seria possível recarregar as armas em tempo hábil para rechaçar
as investidas, cada vez mais próximas. Um vacilo qualquer de
um de nós, certamente condenaria os quatros, enquanto não
chegássemos à boca da rua para correr em campo aberto,
fugindo dali como pudéssemos. Mas antes que abandonássemos
as armas sem munição e puxássemos os facões da cintura,
ouvimos os grunhidos graves, urgentes, que se destacaram
pontualmente acima da confusão à nossa volta. Imediatamente
a cena, coalhada de zumbis, clareou como num passe de mágica.
Eles, inexplicavelmente, recuaram à escuridão das vielas de
onde vieram e nos deixaram sozinhos, assustados, esbaforidos,
com os nervos em frangalhos. Pasmem! Escafederam-se todos,
exceto o maldito Camisa Amarela da Petrobrás!
O horroroso e temível líder impunha respeito.
Ele nos constrangia deliberadamente impondo a força do
mesmo olhar esbranquiçado e inquisidor do dia anterior. Senti
horror àquela criatura. Medo. Senti medo. Senti mais medo
da maneira como ele parecia nos avaliar do que o combate
corpo-a-corpo, poucos minutos antes. Aquela coisa não se
deixaria matar facilmente como os outros. Abílio e eu, sem
trocar palavras, colocamos a árvore nos ombros. Em seguida,
cuidamos de imprimir um trote urgente para bem longe da Vila
do Sossego. Mesmo depois de meia hora de caminhada forçada,
minhas costas pareciam arder, não pelo peso incômodo do
pinheiro, mas por ter uma certeza desagradável de estar sendo
observado, de modo meticuloso, por olhos impossíveis de
vencer a escuridão da noite.
Dia 24 de Dezembro, véspera de natal.
Era a árvore de natal mais bela e resplandecente
que eu já vira. As crianças estavam maravilhadas, alegres,
sorridentes, falantes. E, como eu havia previsto, testemunhar a
vivacidade nos seus olhos era uma dádiva para se guardar por
uma vida inteira. O pisca-pisca, envolto no pinheiro, entrelaçado
de centenas de pequenas lâmpadas, espargia aquele brilho
aleatório, intermitente, a partir do centro da sala, entremeado
de flashes cintilantes das bolas de plástico reluzente, nas
quais as crianças se olhavam e riam à toa, fazendo caretas,
divertindo-se com seus reflexos circulares. Mateus e Alice, com
os rostos lambuzados de chocolate, olhavam-me e apontavamme,
orgulhosos, às dezenas de amiguinhos tão felizes quanto
eles. Foi a cena mais bonita que eu já tive a oportunidade de
ver nesta minha vida e, certamente, haveria de ser a derradeira.
Antes de deixar os pequenos, entregues às
brincadeiras, fui até ao pequeno aparelho de som, conectei o
cabo de força na bateria e coloquei o velho CD de natal, o mesmo
das minhas noites natalinas de outrora. Aumentei o volume ao
máximo. As crianças pararam de brincar por alguns minutos,
envolvidas pela melodia das harpas e canções clássicas que
nunca tinham ouvido. Olhei para a mesa, um pouco mais ao
fundo, quase na penumbra, cheia de toda sorte de guloseimas,
resgatadas do porão de um supermercado, na verdade um
monte de entulho, no mês anterior. Sorri orgulhoso. Era uma
noite de Natal completa. Depois, fiz um sinal discreto para
Abílio, vestido de Papai Noel, para que me acompanhasse lá
fora. Saímos os dois. Tranquei a porta por fora. Tínhamos de
enfrentar o inferno a poucos metros dali.
A sala escolhida para abrigar a árvore e a
decoração natalina foi o cômodo mais alto e seguro do forte.
Seria ali, entre aquelas quatro paredes de clima alegre e festivo,
provavelmente o último reduto da humanidade a sucumbir à
selvageria das criaturas mefíticas que tomaram de assalto o
planeta inteiro.
Os mortos-vivos, surpreendentemente,
começaram a chegar de todas as direções ao mesmo tempo antes
do sol abandonar a vegetação seca e pardacenta que circundava
por quilômetros o nosso forte, e até onde sabíamos, a construção
fortificada mais segura da região. Mas, então, naquele início
de noite, o que parecia ser mais um confronto contra algumas
poucas dezenas de criaturas errantes, tornou-se algo de maior
vulto, algo que excedia de longe o comportamento de ataque
atabalhoado e irracional costumeiro. Eles não se apresentaram
para derrubar cercas nem portões, com a finalidade de invadir,
deixando-se aniquilar facilmente por nossas armas. Desta
vez, eles foram chegando, foram se aglomerando ao redor do
forte, sem atacar, apenas rendendo-se à uma espera, para nós,
gradativamente angustiante e, no andar do tempo, constatado
os fatos, desesperadora. Em duas ou três horas, das poucas
dezenas de mortos-vivos que se punham às nossas vistas,
passaram-se às centenas! Não mais do que cinco horas de
cerco depois, olhávamos estupefatos às milhares de cabeças
famintas, cercando-nos por todos os lados. Quando demos
pela gravidade, já era tarde. Estávamos sitiados naquele mar
horroroso de zumbis, sem opção de retirada.
“O que estas coisas estão esperando?” –
perguntou-me Abílio, retirando o gorro e a barba postiça, sem
virar-se para mim, olhando a multidão infecta, parada, além
das paredes de madeira velha que nos guardavam.
Os sobreviventes, meus amigos, a minha grande
família, todos em seus postos de combate dentro do pátio
próximo ao portão principal, ou nas áreas mais vulneráveis,
olhavam-nos lá de baixo, como se a visão do exército de mortosvivos
confirmasse a cena final do apocalipse. Havia em cada
rosto um misto de medo e determinação de lutarem até o fim.
Finalmente, um movimento diferente começou a criar uma
onda em torno dos infectados. Um corredor se abria à chegada
de alguém e eu já bem sabia de quem se tratava: era o Camisa
Amarela.
Respondi a pergunta de Abílio apontando a nossa
desgraça com o dedo indicador: “Ele. Todos estão esperando
por ele!”
Camisa Amarela, à frente do maior contingente
de mortos-vivos que eu já presenciara, levantou a cabeça para
cima. Seus olhos, parecendo dois feixes de luz dentro da noite,
alcançaram-me de modo implacável, perscrutando-me, como
já esperava que fizesse. Não desviei o meu olhar da intimação.
Havia me preparado para não demonstrar medo diante dele.
Ignorei os glóbulos esbranquiçados daquele zumbi. No entanto,
quando um sorriso sarcástico incomum se assomou na face
purulenta e devastada daquela insólita criatura, um arrepio me
tomou todo o corpo, como se o próprio diabo, tendo somente
ele a habilidade de expressar semelhante fisionomia malévola,
o fosse. Percebi, então, que estávamos irremediavelmente
condenados. Não havia para onde fugir, ou a quem recorrer. Se
Deus nos havia deixado à revelia, o demônio, não!
Abílio também viu a face de malignidade sobreporse
à selvageria irracional do líder da horda. “Que nossa Senhora,
mãe de Jesus, nos receba bem”, ele disse num sussurro. E antes
que eu pudesse dizer-lhe qualquer coisa, ele me abraçou forte,
levando-me aos ouvidos o dever de minhas obrigações: “Força,
Demétrios, não hesite! Cuide de nossos filhos!”. Sem mais, meu
velho amigo deixou-me só em meu posto inglório, e desceu as
escadas rapidamente, tomando lugar próximo ao portão de
acesso principal.
E, assim, deu-se o massacre!
Os primeiros grunhidos odiosos da besta
empurraram a massa virulenta de mortos-vivos contra as
desgastadas paredes apodrecidas do forte e as puseram abaixo
em menos de um minuto.
Não consegui ver mais nada!
Os sobreviventes confiavam em mim. Eu não
podia, de modo algum, fraquejar diante da tarefa que eles
deram-me à incumbência de cumprir. Por isso, fui até à porta
da Sala Natalina e escorei a testa nela. Fechei os olhos. Busquei
coragem nos últimos ruídos da noite. Ouvi nitidamente a
última sinfonia da vida esvaindo-se célere, era a percepção dos
sons que se misturavam no fundo de minha alma: o matraquear
das metralhadoras abafadas por corpos apodrecidos lançandose
sobre elas, o burburinho festivo das crianças rindo à toa
ali pertinho, os gritos desesperados de homens e mulheres
lá embaixo, as gargalhadas de Alice, minha filha querida, o
arrastar de pés vacilantes, mortais, das coisas que iniciavam
o subir das escadas e... a música ao fundo, ressoando além
daquelas paredes... a melodia suave impunha-me vislumbres
da criança alegre, de olhos reluzentes dos enfeites natalinos, de
outras noites, que um dia fui...
Noite feliz
Noite feliz
Ó senhor, Deus do amor...
E, agora, minha última noite de natal.
“Força, Demétrios, não hesite! Cuide de nossos
filhos!”
Apertei com força a metralhadora, levantei a
cabeça, respirei fundo e abri a porta decidido, porque meu pai
sempre me dizia que, em tempos de tribulação ou de guerra, a
tarefa mais difícil de realizar era destinada apenas àquele que
tinha a capacidade de suportá-la.
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